Rewind

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

"Gó"

Gó é uma dessas pessoas que provam toda uma vida; que nos amaram o corpo pequeno e nos colheram as lágrimas e nos viveram a vida por dentro. Olho para trás e vejo-a sempre lá - os cabelos negros e compridos sempre compostos num puxo no cimo da cabeça. As suas mãos grandes que o tempo foi marcando mas que seguraram nas minhas sempre com a mesma força.

A sua bata negra e escura e os olhos muito vivos - a gargalhada fácil como quando o amor se esconde debaixo de cada palavra. As suas histórias que são as da minha família - as asneiras do meu pai que ela me conta; o amor que tem à minha mãe; o coração enorme do meu avô que os ajudou a todos. E a gratidão que nos guarda por isso. E chora de saudade pelo meu avô.

Gó tem a lágrima fácil e o seu amor é feito das exclamações que lhe marejam os olhos. E aperta-me muito a mão quando me vê. Fala-me do meu irmão e de como nós também somos dela - de todas as vezes em que quisemos os dois ver matar as galhinhas ou ver como se faz a marmelada e todos os doces com as coisas das quintas.

O tempo passou pela casa onde ela mora connosco mas sei que nos seus olhos ficaram gravados os nossos primeiros passos e cada uma das nossas conquistas que ela exibe orgulhosa. Ela sabe que em cada uma delas viveu essa teia invisível que nos une a todos.

Gó é o rosto da lealdade - o seu corpo já pesa mas há essa fé que a levanta todos os dias. Não sei se alguma vez lhe disse que a luz dos seus olhos me iluminou sempre o rosto. Mas noto-o de cada vez que páro para visitar os cheiros e as memórias da minha vida.

Os dias felizes; os dias menos bons e sempre a mesma luz. Hoje percebo que havia sempre a acalmia dos seus olhos. A simplicidade das suas palavras - cada uma delas feita do açucar que lhe povoa as receitas.

Há pessoas que nos vivem a vida por dentro. Que cozinham um amor desses amplos, luminosos e profundos como uma janela aberta no início da Primavera.

Sei que encontrarei sempre a Gó nesse jardim cheio de sol onde cresci e onde o seu sorriso branco me lembrará a pureza que lhe forra o coração.

Nos seus braços, ao lanche, na sala grande onde nós, depois de tantos anos, a conseguimos convencer a sentar-se connosco, a vida volta a ser feita desses rituais em que o mundo não entra.

Onde só mora um rosto doce, umas mãos grandes e uns olhos acesos e verdes.

Ouvem-se palavras e as horas fogem-nos por entre os dedos.

E sabem a açucar, como o das receitas.

Como o do seu coração.

1 comentário:

André Mesquita disse...

É tudo isso, exactamente. E é tão bom sentir-se cá dentro a memória desdobrar-se em sentimento. :)