Chegara de noite à cidade para o enterro do amigo. Envolvia o corpo duro dos edifícios o sono pesado de uma noite escura de Inverno. Havia largos anos que não via aquela que fora a sua cidade. Reconhecia-lhe vagamente o traço fino. Pelo vidro do carro apressado os seus olhos tentavam perceber onde tinha o tempo deixado marcas mais fundas.
Viu duas crianças com o corpo pequeno e ágil que brincavam no pátio de um prédio que dava para rua. Em tempos havia sido deles esse espaço sem tempo que é a juventude.
Pediu ao taxista que o levasse a uma rua que ansiava agora, mais que tudo, ver de novo.
Quando chegou viu o velho bairro pobre onde crescera transformado num corpo sem alma. Os ventres das casas expostos e vazios; as árvores solitárias e magras em passeios de cimento gasto e estalado.
Mas ainda estava ali a casa onde crescera. E logo ao lado a do amigo que o vira um dia partir. Assim postas lado a lado - vazias, escuras e esquecidas as casas eram como que a imagem do que foram os seus caminhos. Como se uma delas tivesse ficado no mesmo sítio esperando pela gente do lado que não veio mais.
Sentiu um aperto no peito. De repente, sentiu que o amigo tinha emprestado a sua vida à promessa que lhe fizera de que esperaria por ele. E agora, assim velho, sentiu falta dessa verdadeira segurança que é a de termos sempre quem nos queira e nos aceite e saiba sempre o nosso nome.
(O táxi seguiu.)
Entrou na casa e aproximou-se de uma janela. Em baixo, o mar silvava nas rochas. Ao longe, a cidade dormia sobre o leito do presente e acordaria nos braços do futuro. Só ele revisitava o passado. Não sentia que tivesse ganho nada. Ou talvez nada do que tivesse ganho, lhe trouxesse aquilo que havia perdido.
Já nada poderia dizer ao amigo. Olhava o corpo fixo da cidade como que esperando que fosse pela sua voz que ele soubesse o que esconde a areia do tempo. A cidade nada disse. Talvez já não visse nele o miúdo com a gargalhada funda e os olhos vivos de vigor.
Demorou o olhar pela praia magra que repousava no fundo da encosta. Desceu por umas escadas estreitas que descobriu ainda permanecerem por ali.
Sozinho e imerso na noite percebera o que era isso da saudade. Ficar-nos na memória a intensidade exacta do que fomos e nela bem presa a vontade que tivesse durado para sempre.
Era agora a sua vez de continuar sem o amigo. Esse amigo que voltava agora no silêncio quieto de uma noite de Inverno. Voltava como sempre volta quem nos quer.
Só então percebeu que tudo fora um reencontro. Um reencontro com aquilo que nos fica por cima dos corpos.
"Obrigado", pensou.
E, de repente, pareceu-lhe ouvir uma gargalhada feliz e infantil que vinha da casa.
1 comentário:
que sublime*
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