Rewind

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

mãe,

isto de ser voz tudo o que te guarda - 
os livros, os discos que me deste, as cartas, 
e poder neles ouvir-se do teu amor sempre a toada firme
quase como se o princípio de um abraço pudesse sempre começar
e no chão apontasse o pó o caminho para casa

isto de te ouvir passear dentro de mim - 
eu, a casa onde tu decidiste que havia de morar o amor
e, desde então, essa ferida que ajudas a curar sempre que as coisas me doem 
que o tempo não chega ou não existem palavras para calar-me as perguntas

chegas tu, mamã, 

arrumas-me o peito - com jeito, como num livro que conheces de cor -
abres a página certa, reabres as janelas, o ar fresco entra como se, de repente, se pudesse começar de novo, 
e eu, ao som da mesma música, descubro que se pode amar outras coisas, aprender outros nomes, 
dançar com outros corpos uma felicidade desconhecida

é isso, minha querida, 

decidiste, no momento em os nossos dedos se ataram, que eu havia de conhecer o amor. 

por isso, minha malandra, 

obrigado

fizeste de mim, ainda assim, uma casa grande - as divisões cheias de rumores de gente que, algures, deixei entrar; as gavetas repletas do cheiro dos enganos do mundo, restos de sonho, cartas que não enviei ou que ainda esperam, de alguém, a resposta merecida - e ser isso tudo, mesmo assim, o lugar onde persiste tanta coisa boa - o ter-se tentado, o ter-se errado, o ter-se emendado, a tempo, o que quisemos, sem dúvida, que permanecesse. 

ensinaste-me, mãe, o amor - o convidarmos alguém a pisar-nos o soalho dos ossos; o dizermos a alguém, com vontade, onde se esconde a chave do nosso coração e deixar tudo isso entrar. 

mas, mãe, as casas grandes desarrumam-se, às vezes, 

sabes, o correio não traz todas as respostas, 
as janelas precisam de quem as abra, 
e as gavetas de quem, finalmente, as feche

por isso, mãe, diz-me que, se eu precisar, tu vens e arrumas-me,

não me importo que os teus pés pequenos me pisem o soalho dos ossos, 
que as janelas se abram e se desenhem na parede, sob a luz da tarde, pegadas do tempo que passa
isso e que ponhas a tocar a música de sempre - 

gasta, repetida, decorada, ridícula - nossa. 

vem e fica. 

as mães ensinam aos filhos o que é o amor e só elas, que os conhecem como a uma casa, sabem onde se esconde, sob a pele deles, a chave suplente que lhes abre, de novo, o coração. 

Obrigado. 

RM| IV-IX-MMVII    

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