Rewind

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Sonho do que foi

Custa quase sempre mais viver sem. Quando se perde e se abre uma falha na espessura dos dias, na segurança do hábito, na certeza que se alimentou de nós e alimentamos, a vida que vivemos à tona parece-se com a ficção da que calamos e nos fica no sangue, no silêncio e no vazio.
E tudo isto parece tão mais dificil do que os tempos do aprender a viver com. Um coração já nasce ensinado a reconhecer aquilo que quer guardar, como se visse no escuro. E depressa descobre o espaço que sempre esteve vazio mas que só agora cheio percebe ter existido sempre.
E com que o encher agora? Recordar é perceber que a promessa do sempre foi algo que se nos infiltrou na carne e nos empurrou o corpo acima dos limites e do tempo; sonhar é encher o vazio com essa mesma ausência, com essa vida tão ao contrário daquela que sabemos ser só uma e a que queremos no lugar desse corredor de dias com portas fechadas.
A recordação está-me na pele como as marcas de dedos nas páginas de um livro. O sonho, esse, é um voltar a tentar ver no escuro e desejar secretamente que venha o dia com sabor a outros dias. E que todos os dias passem a ser esse, com sabor ao que queremos que fique e a mágoa de tudo o que não se viveu.
Ouço os medos à minha voz, os cansaços e a tristeza e abafo-os com o ruído da aparência do que sou. Ouço a saudade e os passos dela aqui dentro a procurar o que foi e a chamar o que não vem nesse dia a mais que é um dia com menos.
Como enfrentar a incerteza do Mundo, sem esse conjunto de corpos que são o nosso quando o cansaço vem; sem essas pernas que são as nossas quando o caminho é uma encruzilhada; sem esses olhos que são os nossos quando já não vemos?
Tento encher o vazio com a vontade do regresso. Tudo porque quero acreditar que uns dos medos que ouviste à minha voz foi esse - o de te perder.
Tu que me sabes o sangue e as palavras que o meu silêncio diz, o tamanho que tenho por dentro sabes bem que não posso aprender a viver com isto. Isto que é o não ter. Não nos podemos habituar a viver com o que, por definição, é o sem.
Há um vazio cá dentro por onde passa o barulho dos carros, o som de vidas de que nada sei, as luzes das ruas e o fumo sujo e gasto na pele dos granitos, como coisas que pisam e barulhos que entoam nas paredes vazias.
Como te contarei um dia como foram meus dias? Como te contarei como foi não teres sido as minhas pernas e os meus olhos?
Lembro o que foi carne e guardo-o cá dentro. E continuo a sonhar em silêncio. O vento passa e leva de mim o pó desses sonhos. Tudo porque na vida debaixo do silêncio táctil da pele ainda não acordei do sonho que até então vivia.

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