Rewind

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A minha Gó.

Gó senta-se sob a luz da tarde no banco de jardim. Assim que chegamos para a ver nasce no limiar do seu olhar o brilho de uma emoção que crescemos a admirar. E sabemos que chegamos a um lugar onde tudo faz o sentido perfeito da pertença.



Ouvimos as suas palavras e sentimos na curiosidade com que nos lança a doçura nas perguntas que a nossa vida verdadeiramente se confunde com a dela. Há pessoas a quem nunca conseguiremos retribuir a sorte de alguma vez as termos tido.



A Gó é uma delas - a recordação dela nas tardes em que nos ouvia a meninice e se maravilhava com cada um dos nossos feitos como se fossem para ela a maior das alegrias; o brilho aceso dos seus olhos verdes e profundos; as suas frases lapidares de uma simplicidade que faz nascer nas palavras uma pureza de cristal.



Crescemos com ela por perto. Foram intermináveis as tardes a desfolhar o milho, a ver a matança das galinhas, a ouvir histórias de gente de trabalho que se habituou a pedir pouco da vida e que empresta ao corpo a força que lhes nasce do carácter vincado e sólido como grandes muros de pedra. Há corações dispostos a amar em troca de muito pouco - corações para quem o amor se assemelha a um fervor de sangue; a uma entrega honesta e tão completa que se revela nesses pequenos nadas que se tornam tudo o que se acaba guardando.



A tarde corria - e os seus dedos grandes procuravam os nossos. Curioso como há imagens que acabam por nos significar parte essencial da vida. Escutamos nas suas palavras o mesmo carinho de sempre - da mesma doçura espessa do açúcar amarelo de que ela tanto gosta.



Há um tipo de pessoas que nos sabe. E que acaba guardando de nós uma recordação que nos faz lembrar aquilo que nunca devemos deixar de ser. Para que as tardes sejam sempre amplas, cheias de luz num terraço e num jardim enormes. Gó chegará sempre à porta e estará sempre por perto com o seu sorriso enorme e sincero.



Sabe bem crescer assim - no meio do amor que se forja pela proximidade dos corpos e das vidas. O amor acaba sendo esse reconhecimento nos outros de algo que nunca conseguiremos ser. De vermos em alguém um rosto que fica preso no fundo da memória - iluminado por uma luz morna e ampla de uma tarde de Verão.



A Gó é as compotas, os doces e as grandes mesas de Natal e de Páscoa; é as brincadeiras e a cumplicidade marota que lhe arrancamos nas missas da infância. A Gó é das maiores provas de amor que pude conhecer.



Chegar para a rever é como garantir que na grande casa as salas ainda são vigiadas pelo seu olhar atento e andar ligeiro; que se repetem os rituais de rega do jardim que deixa no ar a frescura e o cheiro intenso da terra moilhada; é garantir lanches abundantes em que a quantidade revela essa generosidade que habita os corações mais insuspeitos. É como voltar a ter por perto alguém que corporiza e vive uma fé acesa mas calorosa que nos acolhe e nos recebe com desejos de grandes gargalhadas e momentos felizes.



A Gó gosta da casa cheia e o seu olhar acende-se com as vozes que habitam as salas. Brilham como as pratas em dia de festa. A Gó sabe-nos. E ama-nos com essa felicidade que apenas os sentimentos verdadeiros conseguem desenhar na expressão de alguém.



A Gó são as vindimas e as grandes mesas em dia de romaria na aldeia; os passeios a pé pelas ruas calmas em que a sua mão nos segurou a nossa com essa força que denuncia o medo que é o nome do verdadeiro amor.



A Gó é esse manancial de vida e vasto rumor de ternura com que nos brinda sempre.



Visitá-la é saber que a saudade redobra sempre que se tenta matar mas é saber igualmente que nesse sentimento reside isso mesmo que é o amor - uma tarde de sol em que os sorrisos e os olhares se confundem com a própria vida. Uma tarde de sol num jardim enorme onde se pode voltar a ser o melhor todas as vezes.

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