Rewind

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Até sempre, Tia,

Tive uma família que nunca me ensinou a dizer adeus.
 
A vida foi sempre um ciclo sereno em que as saudades cresciam no intervalo entre as visitas, entre as vindimas, entre as férias de Verão que pareciam não acabar nunca.
 
Até hoje, dizer adeus não deixa de ser estranho - é quase ter que chamar vida à vida sem vindimas, sem Verões em Caldelas, sem lanches e almoços em dias de anos. Todos os anos, toda uma vida.
 
Temos saudades suas, Tia Ester.
 
Outro dia, lembrei-me das nossas conversas debaixo das árvores nas termas, de como conservou a sua serenidade de Professora durante toda a vida e de como gostava de falar comigo.
 
Lembro-me muito do Avô, desses Tios e Tias que foram parte da muralha em que a infância pôde ser o chão de uma casa.
 
A Avó fala-me muito de si, fala-me dos vossos tempos de amigas na escola, muito antes de serem cunhadas, fala-me como se não conseguisse deixar de a esperar nunca.
 
Ficámos os dois a ver fotografias até muito tarde - aprendi com ela esse vício de ocupar as ausências com a doçura do que vivemos, com a verdade do que fomos uns para os outros.
 
Ri-me muito ao lembrar-me da Tia a dizer:
 
"- Ricardinho, escolhe um carro para brincares que eu dou-to." 

Era o Verão de Caldelas, era o tempo das brincadeiras sem fim e sem medo.

E logo a Tia Né a correr muito:

"- Querido, escolhe dois que eu pago."

Aprendi que em todo o amor há uma espécie de rivalidade e habituei-me a ter um coração grande como um abraço generoso onde coubessem todos quantos gostavam de mim.

Acabei essa tarde com três carros para brincar e um saco de berlindes que guardo até hoje.

O carro que a Tia me deu, ofereci-o ao Tiago, filho do Pedro, este Natal.

Gostar das pessoas é repetir o bem que elas nos fizeram, é prolongar o afecto dos outros para lá do tempo que temos por aqui.

Lembro-me do parque das termas, de beber muita daquela água e de andar a dizer à família toda que a bebesse também para que tudo durasse para sempre.

Uma família é uma árvore perene com frutos que vão caindo.  

Tenho pena de serem cada vez menos os que me chamam:

"Ricardinho."

Como se tudo fosse ser sempre bom, como se em todas as curvas da vida sempre houvesse quem nos esperasse.

"Anda cá, querido, anda cá." 

Obrigado, Tia e até um dia.

Já sabe, é só chamar.

"Ricardinho!" 

E eu arranjo uma maneira de a encontrar.
 

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