Rewind

sábado, 3 de novembro de 2018

Gó,

Gó, 

Foste um rochedo forte contra as minhas inúmeras investidas de miúdo chato, sabes?

Era um puto com perguntas nos olhos, uma criança que teve a liberdade debaixo dos pés, que andou de colo em colo e que foi feliz. 

Eras para mim, bem o sabes, o amor no superlativo - sempre. 

Mesmo assim, lembro-me bem, eu testava os limites da tua fé, media o pulso da tua crença sem perceber, no fundo, que o que queria era poder emendar o mal que achava que o mundo te tinha feito e que não merecias. 

Gó, achas que Deus é justo? - eu, de pijama de seda trazido de Macau, uma espécie de quimono que achavas que me ficava bem, sentado na tua cama, com não mais de oito, nove anos,

É que não percebo como Deus dividiu o mundo entre pobres e ricos e os ricos vão para o céu só por ajudarem os pobres. Isso é instrumentalizar os pobres, percebes? Quem decidiu, antes de tudo, quem fica de que lado?, 

[Round 1] - Menino Ricardo - 1 vs. Gó - 0. 

Dentro de mim, ecoava a história da tua vida - muitas irmãs, uma casa pequenina, uma infância de trabalho, pouco direito a sonhar - o mais longe possível do que eu tive. 

Doía-me tudo aquilo, gostava de poder aliviar algumas das tuas dores, devolver horas inteiras à criança que não chegaste a poder ser. E, antes de dormir, zangava-me com um Menino Jesus que, como criança que foi também, não te deixou ser uma por mais tempo. 

Tu sorriste-me e, enquanto me calçavas as pantufas, disseste-me, 

Menino, a minha vida não foi fácil, sabe? Mas, no meio de tudo, tive direito à minha dose de coisas boas. Apareceram nas nossas vidas os seus Avózinhos e tudo melhorou. O seu Avô empregou a minha família toda, trouxe-me cá para casa e, mais tarde, veio o menino e o Dedé e tudo mudou na minha vida. 

Não acha que Deus esteve por detrás de tudo isso?, 

[Round 2] - Menino Ricardo - um murro no estômago. 

Nunca me esqueci disto, sabes? 

Que os teus olhos me tenham ensinado a ver que na vida há sempre uma razão para agradecer. Que, por muito mal que nos tenha acontecido, há sempre a esperança de que alguém nos estenda a mão e tudo se possa compor. 

Mas eu não desistia, 

Sabes, Gó, quando estiveres aflita, não peças logo ajuda a Deus. Eu ajudo-te no que puder, está bem? Prometo., 

Pelo amor que te tinha, não podia arriscar que a ajuda de que precisasses, pudesse não chegar a tempo. Havia de fazer tudo o que pudesse por ti - era o coração, desde pequeno, a querer salvar-te do que viesse que pudesse levar-te de nós. 

Levaste-me à escola, meu amor, muitas vezes. Na verdade, o teu exemplo tornou-se, até hoje, na mais perfeita lição de amor, de paciência, de abnegação, de coragem e superação que conheci. 

Desculpa, Gó, qualquer coisa. Tudo o que quis, em todas as vezes que interroguei o teu Deus, foi uma resposta para os desaires do mundo. 

Percebo, hoje, que a culpa é dos homens - e que, sim, há pessoas como o meu Avô e a minha Avó que, podendo, estenderam a mão e tentaram fazer a diferença. 

Mesmo assim, tal como te disse, em pequeno, 

Um dia quem te vai dar colo sou eu!

Telefona-me e, se quiseres, diz,

Menino, quer ir comigo e com o Dedé à missa?

Eu vou, nós vamos. 

Por ti, pela fé que tenho no mistério deste nosso encontro e, também, para agradecer. 

Por ti, pela luz do teu coração e pelo bem infinito que te devemos. 

Obrigado por tudo, meu amor.

Os milagres existem. 

Tu és o meu. 

RM| III-XI-MMXVIII

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