Rewind

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

resgate.

O escritório com a janela e a sua luz filtrada pela cortina clara. A madeira negra do pau santo e os livros nas estantes. O teu retrato sempre presente. A jarra que ofereceste à avó quando o pai teve o primeiro dente. Os cristais de Murano pousados na secretária com a luz formando um vasto amplexo de cores. E a cadeira onde te íamos surpreender. E uma gaveta que se abre. E descubro, como chegados ontem, todos os postais e cartas que eu e o A. vos enviamos durante a infância. São postais e cartas com essa letra infantil que se vai transformando ao longo dos anos.

São as gargalhadas dessas infinitas tardes de praia; dos banhos de mar e dos livros que se liam.

São as primeiras palavras dos homens que nos fomos tornando debaixo do teu olhar atento.

Tudo isso imune ao tempo. Tudo guardado numa gaveta - o passado que te contavamos com essa alegria imensa que só uma crença absoluta pode gerar. O contentamento de crescer abrigado - debaixo desse abrigo que são aqueles que sabemos nos temem as quedas e nos antecipam os desejos. Descubro a casa numa acalmia incomum - a época do vinho chama-nos para a terra, para o cheiro dos lagares e o trabalho dos corpos.

Releio cada um deles - e, de súbito, o meu irmão é pequeno e vai crescendo a cada palavra, a cada ponto final e vírgula como se com isso ele fosse pontuando a vida e o caminho.

As paisagens das imagens - quase sempre o mesmo lugar. Percebo que foste tu quem nos ensinou esse gosto pelos rituais, pelo retiro. Cumpro-nos nessa fidelidade às pessoas, aos nomes, às famílias e às estórias. E é como se continuasses nesse olhar atento e devoto que sempre puseste nas vidas dos outros.

Suponho que esta seja mais uma carta. E se reparares bem a imagem não mudou. Continuo a ter essa vontade de partilhar contigo os dias com sabor e cheiro a mar; de te contar com um olhar de quem faz um álbum como tudo continua a ter os nossos nomes inscritos. E são as saudades que todos os postais diziam existir que permanecem fundas e vivas como o som duma onda na costa.

Há coisas que não morrem. Que a mudança da caligrafia não deixa de dizer da mesma forma.

E parece que te ouço dizer de novo como a mãe é uma mulher que admiras, como a uma filha.

Sorrio ao pensar nesta tua surpresa. E em como te conheço bem. A vida é uma conversa que se continua muito depois das ausências e para lá delas. Aqueles de quem gostamos e cuja saudade banhou a imagem que temos delas continuam a morar na alegria que nos nasce dentro quando percebemos, a cada dia e todos os dias, que não há despedida possível.

O amor é uma carta com a data do dia em que vivemos. E apenas a palavra saudade permanece imensa e a mesma, com todas as letras. E é isso que se diz sempre em todos os postais. Mesmo que a letra, um dia, acabe por mudar.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

a casa, na curva.

Visitei a casa como ao sabor de um desejo; uma vontade última de chegar a um lugar com o tamanho e a dimensão do familiar, do reconhecido que é justamente o lugar onde sentimos que tudo o resto se relativiza ou se amplia, por ser visto desse lugar seguro que é a pertença.
A casa continuava na curva, com o seu terraço aberto como um ventre sobre uma imensidão de verde. Abri o portão como se quisesse surpreender a vida no seu curso, como se quisesse não ser notado. Reparei como os cheiros continuavam os mesmos - as flores como um lençol verde bordado de cor. A mesma calma banhada de luz e a casa sozinha como um farol que sempre indica onde acostar. Reparei na pedra que se ergue na fachada - a data da construção gravada como um nome. Há datas que são como nomes e que se usam como pretexto para se falar de alguém. A casa cheirava a tempo; o tempo podia sentir-se em tudo: nas árvores plantadas no tempo dos bisavós e até antes; os móveis com uma história de mãos e de vidas presas no cheiro a madeira; as porcelanas guardadas como memórias de parentes e afectos antigos. A mim sempre me lembraram a persistência do homem sobre a fragilidade da vida e dos laços. Os quartos e as janelas com vista.
Acredito que cada casa veste o peso de quem a habita. Percorri toda a extensão do terraço e pude ver os telhados semeados entre as vinhas e as quintas com os seus muros velhos cobertos de musgo e idade. Sorri ao pensar que são o equivalente aos jardins verticais dos dias que correm. Vi a terra a que me habituei a chamar nossa, não pela propriedade que, sem mais, me lembra uma forma tosca e sórdida de existir. É nossa pelo apelo da terra e da memória que nos surpreende e banha o rosto como o vento que bafeja ou atinge a casa nas noites agrestes do Inverno ou amplas do Estio. A lembrar o compasso de um amor antigo.
Vêm aí as vindimas e o vinho ganhava grau nesses últimos banhos de sol antes da colheita. E veio-me à lembrança essa infância com cheiro a terra e os passeios contigo no colo da paisagem. E de como a casa se enchia de gente e de ruídos como num ritual que tinha a sua religião. A tua fé sempre foi composta da luz do sol e da natureza que brinda os homens e o amor do seu trabalho.
Lembro-me do respeito que os trabalhadores te tinham. Da forma como te olhavam quando lhes falavas enquanto comiam na longa mesa posta na adega. O respeito acende de uma forma muito particular o olhar, com uma luz única que lhes moldava o rosto e os modos. E tinha orgulho de ti.
A casa estava cheia por esses dias, dias de campo e de horas de trabalho e de comunhão. Todos nos mudávamos para lá e podia encontrar a avó no jardim com os seus olhos de um azul que sempre achei fazer o céu ciumento. E tios e tias, primos e pais, como que cozidos numa fôrma própria e só nossa.
Envelheces-me no sangue que é, como o vinho, o néctar onde se molda o sabor das coisas depois da passagem do tempo. Mas nunca a tua perda me deixa de ser precoce como, de resto, o são sempre as daqueles por quem nutrimos essa espécie de vício de alma e de sangue que é o amor verdadeiro.
Relembro os retratos da vossa juventude, tua e a da avó, especialmente aquele que, como sempre me contaram, marcou a vossa primeira saída como namorados. O teu rosto firme e o olhar profundo e aceso; a avó com o olhar amplo como uma manhã de Verão em que a luz do dia se assemelha muito a uma promessa de felicidade; o vestido leve e vaporoso e um belo colar de pérolas de três fiadas. Sempre que a avó passa por ele vejo como os seus olhos se alteram. Faz um silêncio sincero como se se voltasse para dentro a ver o filme que vos conta e que ela teima em rever, no tempo em que os vossos rostos não tinham os pequenos sulcos, como um itinerário da vida e da personalidade, que vieram depois. Curioso que apareçam quando já demos frutos na vida. Como se fossem vestígios de uma grande vinha cujo destino se cumpriu.
Visitar os lugares é como visitar as pessoas, devotar-lhes o mesmo amor que vive sobre as ausências. E a casa enchia-se, de novo, desse rumorejar de passos e ladaínhas como se reconhesse no peso dos passos alguém do seu ventre. Esperei pelo pôr do sol. Sempre os admirei com essa promessa de proximidade que a noite representa. À medida que vamos envelhecendo a noite custa mais passar. Talvez porque nos lembre da perda e da distância.
Volto inúmeras vezes às quintas e à casa que tem o teu nome escrito na data de construção na fachada. É anterior a ti, muito anterior ao nosso laço que essa terra fez maior e mais fundo. Mas é de ti que ela me lembra.
Voltei com a alma cheia. E olhei para o número na fachada antes da casa desaparecer na curva. E pude jurar que a data inscrita era a daquele dia. Porque nunca é tarde para se ser criança num promontório sobre um mar verde. E o respeito acende-me o olhar. E, com ele, a saudade que é o chão que há de ter sempre as minhas pegadas ao lado das tuas por mais que o tempo as pise, como às uvas as pisam as pessoas, avô.

domingo, 1 de agosto de 2010

Uma aventura no mundo do trabalho por Isabel Alçada.

Há que dizer uma coisa: gosto de Portugal. Gosto mesmo, que isto dos apelos insondáveis da terra onde se nasce está bom de ver que persiste mais e melhor do que se explica. Um dia chegarei à política, quem sabe, dizendo aos portugueses que gosto de Portugal. Que até tenho um desses "kits patrióticos" com uma bandeira à la carte - desses que embelezam corta-unhas e as vestes interiores, que isto de gostar implica levar a coisa a fundo e pô-la à venda com uma inscrição "made in china", que o lucro faz com que se vista qualquer camisola e se ame qualquer país, desde que bom pagador, claro está. E o pior é pensar que há quem ganhe eleições a dizer que gosta do país. A política é um mundo movediço, com uma engenharia muito própria, diriam alguns. E provavelmente devo eu concluir que não estou maduro para mandar e desmandar na amada pátria, porque o gostar, senhor Ricardo, implica fazer muitos sacrifícios - sacrifica-se a honestidade, a seriedade e destrói-se a economia e as finanças, em nome desse amor à prova e contra tudo.




Não sou capaz de um amor desses. Um amor desses é ferida que dói e se sente. Não agora, mas um dia. Tenho aprendido o que é o amor à pátria com esta ministra da educação, por exemplo. Ler os jornais desta pérola atlântica que é Portugal é saber que há uma ministra, grande portento da erudição, que quer acabar com os chumbos. Não, a ministra não tem fama de dentista e se deu com a língua nos dentes nos jornais de hoje, não consta que tenha quebrado o belo sorriso de gesso que lhe enfeita as feições. Anda a dar-se esta pérola a porcos, e é já há muito tempo. Há demasiado, diga-se.


Mas Portugal está contaminado desse amor doentio - esse paternalismo de falsete que consiste em amar os filhos mesmo por cima dos seus erros. Porque a ministra não quererá reconhecer que o erro será precisamente seu e esse - o da educação que estará a dar aos amados filhos da Pátria. Que é que se espera? Que a Pátria se transforme em maralhal de génios e eruditos por decreto? Ou quer-se chamar de política educativa a mais uma das tentativas de cosmética estatística que consiste em reportar às instâncias europeias a fabulosa progressão do país?


E o pior é que, embora não analfabetos, temo-los iliterados - os tais que educados neste laxismo paroquial de "panos quentes" "não percebem nada de política" e acabam votando em quem lhes faz a cama e lhes compõe os lençóis.

Há dias em não apetece ler os jornais - deve ser a silly season, mas mais silly do que nunca. A ministra deve estar a pensar em mais uma aventura de verão, é o que é, coitada, que isto de ser patroa dos professores é muito para pouco, como qualquer alma caridosa perceberá.

Falha-me aqui a caridade, Deus me perdoe. E a ministra também. Não consigo imaginar profissão mais destruída que a de ser-se professor. Então não é que ser-se professor, nos tempos modernos, implica aulas de defesa pessoal e um cinturão negro? Pois, a pedagogia nos tempos modernos destruiu o mérito, destruiu o civismo e o respeito. O que se quer é canudos - de qualquer universidade que até se pode chegar a primeiro ministro. Nem que depois as criaturinhas doutoras não saibam mais do que os mandar à cabeça uns dos outros.

É o amor-ódio à Pátria, suponho. Mas não consta que países possam ligar a uma APAV.

O amor é uma coisa que vive mais do que se faz e menos do que se diz. Como se vai dizer a um aluno: "Não estudaste, não fizeste nenhum, mas o caminho continua." E, claro, o aluno nunca imaginará que a sorte da sua vida veio de um acto extremado de amor de uma ministra com sorriso de gesso; pensará, apenas, que isto de ter um saco de pancada é altamente. É o estatuto do aluno, veja-se só. Hoje vale tudo. Vale a pena construir um país de faz de conta; vale a pena premiar a estupidez; destruir os limites que devem balizar qualquer relação saudável.

Sugiro à alminha caridosa e ministerial que escreva um livro chamado "uma aventura no mundo do trabalho." Mas que seja sincera. Porque a leitura faz bem (ou fazia no tempo em que escrevia) se se contar a verdade. E diga, senhora ministra, que o país onde não há chumbos é, também, o país que não vai querer os seus trabalhadores; o país que não quer cidadãos deformados, sim, deformados, neste molde de amor cego.

Os amores acabam, senhora ministra. E alguns acabam mal. Porque a senhora pode gostar de uma ideia de país utópica, mas tem de gostar também das pessoas que vivem no país real. Não basta dizer que gosta do país, porque aprendeu que ministro que é ministro, também tem que negociar. Tem que gostar das pessoas; tem que gostar de ver um futuro onde não põe uma corda na garganta do país.

Fala-lhe alguém que não sabe nada do amor. Fala-lhe alguém que ainda acredita que os tabefes que os filhos dão aos professores são os que os pais não lhes deram, em bom tempo se perdeu a oportunidade, está visto. E isto não é amor. É até, quem sabe, fascismo. Porque a democracia, para os senhores, é estar em frente a um precipício e dar um passo à frente. É o "Avançar Portugal." Hoje não digo que gosto de Portugal. Prefiro mostrar que isso é verdade. E, prepare-se senhora ministra, porque neste país ainda se podem chumbar Governos.