Rewind

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O lugar onde moras, ainda.

A casa há-de ficar vazia, um dia. Depois da tua partida, há uns anos, tudo ficou ainda no mesmo lugar de sempre - os quartos como o retrato fixo do tempo que passa; os corpos cresceram; as pessoas entraram e saíram. Mas, depois de ti, a ausência ficou ainda mais funda. Ou foi mesmo a ausência, essa que chegou quando saiste.
Por vezes, penso que crescer é ir perdendo. Acho que nunca cresci até ao ponto em que poderia perder-te. Sei, hoje, que nunca se cresce o suficiente para aguentar perdas como a tua.
A casa continua a mesma - os retratos de prata como fragmentos de um tempo de infância longínqua que não recordo, mas que as imagens me dizem ter sido feliz.
Vejo-te com o peso de alguns anos, mas a minha imagem de ti, enquanto crescia, foi sempre essa - a franqueza e a rectidão num rosto marcado de pequenas dobras a fazer lembrar papeis antigos.
Poucas pessoas são esteios de uma vida. Tu foste o chão onde aprendi a andar. O céu de quase todos os voos.
Contigo aprendi que os silêncios podem dizer muito - que quase tudo se pode inscrever e gravar na intensidade de um abraço ou na forma firme como se segura na mão de uma criança, enquanto ela cresce.
Talvez por isso nunca tenha gostado de apertos de mão frouxos. Fica-nos muito daqueles que amamos.
A casa continua lá. Vou lá menos vezes, agora. Acho que aprendi a aceitar que a distância não apaga os lugares onde sabemos pertencer.
A minha recordação de ti é um filme silencioso; um contínuo que dói menos quando sinto que a tua ausência me vem visitar. É um antídoto contra cada momento feliz ou doloroso em que não estás lá.
Nunca se chega verdadeiramente a aceitar a morte - o que aontece é que uma ausência permanente nos ensina a caminhar por cima dos buracos que se abrem na espessura frágil de uma vida.
Passaste a morar nas palavras. As tuas palavras que recordo dão-te vida. Frases com uma clareza lapidar ditas em longos fins de tarde lassos no campo.
A terra verde a perder de vista. A nossa terra verde, em que o barro do chão engoliu passos dos que já nos foram antes - os que vieram antes de ti e de mim. A memória como um lugar onde sempre visitamos quem perdemos. Sem saberes, ensinaste-me que te posso visitar sempre.
Com o respeito pela memória que me ensinaste nunca te perdi. Hoje somos felizes, por isso. Porque todos continuamos contigo.
Presa nas palavras vem a luz e a felicidade egoísta dos fins de tarde por entre as vinhas e o horizonte desocupado, ao fundo, por entre o casario branco semeado no monte.
Aprendi a viver contigo de outra maneira. E é dos sítios onde o que me ensinaste me trouxe que te recordo sempre.
(Sinto a tua falta.)
E quase sinto, de novo, o teu abraço forte e o teu riso franco. E as tuas palavras são como os retratos de prata lá de casa - o lugar onde moras, ainda.
E sempre, avô.

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