Rewind

sábado, 10 de outubro de 2015

fuso horário,

quando penso em ti, Avô, não me servem os relógios.
 
fico deitado todo na poltrona enorme da memória e todas as portas sentem a minha espera.
 
quando penso em ti, nenhum pretérito é perfeito - que porra de língua esta que resolve chamar perfeito ao tempo em que a saudade se conjuga.
 
mas eu falo de ti muitas vezes no presente - as pessoas que me ouvem, pensam que estás vivo, que ainda ontem falámos até às quinhentas e que é por isso que eu sorrio tanto.
 
às vezes, apetece-me mesmo enganá-las, sabes?
 
só por uma vez que seja, dizer outra vez,
 
vou jantar aos meus avós.
 
e ser verdade que estás na cabeça da mesa, que obrigas a Vovó a comer mais,
 
Milinha, anda lá, come mais um bocadinho.
 
Sabem, A. e R., fui eu que ensinei a vossa Avó a comer!
 
e a Vovó poder protestar só porque pode, só porque quer, só porque sim.
 
parou-me o coração, nessa como em tantas outras horas - às vezes, penso que a tua morte aconteceu num outro fuso horário - como em todas as perdas, cá dentro, ainda falta tempo para acabar, ainda há tempo antes de começar a véspera do fim.
 
Cá dentro, o tempo é outro - em poucos anos, vivi contigo uma vida inteira.
 
(que não chega.)
 
Sabes, Avô, hoje é sexta e pousei o relógio.
 
era bom escapar-me para jantar convosco, não achas?
 
e no terraço, a aproveitar o bom tempo, antes que passe.
 
A Mãe sorri quando lhe digo estas coisas - ela sabe, porque me ensinou, este amor sem jet-lag, este amor em que os ponteiros são inúteis e ridículos.
 
Sabes, Avô, tenho saudades desse tempo sem gramática - o amor das crianças conjuga-se sem verbos; conjuga-se com gargalhadas, com aprender a chamar casa aos braços de alguém.
 
Hoje, mais do que tudo, queria ter ido para casa - os meus Pais, vocês, a Gó, o A.- e podermos, os dois, tu e eu, pousar os relógios.
 
(e ser dentro de nós, a mesma hora).  
 
Hoje, a saudade veio no sangue, acho eu.
 
Fui levar o lixo ao fim da tarde e vi algumas sombras no passeio.
 
e se uma delas pudesse ser a tua, só hoje?
 
Sabes, Avô, todos os dias digo à Avó que não tenha pressa.
 
E digo-lhe, a rir, que sem o meu chão, a vida será um deserto.
 
A minha família - nós, os que nos escolhemos uns aos outros, os que nos quisemos, nisso de nos vermos todos os dias, de estarmos perto, de não poder haver nenhum nome depois de nós - foi o meu milagre.
 
Por isso, Avô, lembra a estes sacaninhas que não tenham pressa.
 
Diz,
 
Milinha, não tenhas pressa, que os rapazes precisam de ti.
 
E aos meus Pais e ao A. também.
 
Quanto a ti, havemos de nos encontrar.
 
Digo à Avó,
 
Só me importa a vida aqui.
 
E, depois, para onde achas que vais?
 
Avó, que é que achas, malandra?

Hei de ir sempre para onde vocês estiverem.
 

2 comentários:

Anónimo disse...

Que lindo tudo o que escreve! É sempre um grande gosto visitar este blog! :) RTP

Ricardo Mesquita disse...

Muito obrigado, querida Professora. :)

Gosto muito de si.

Um beijo com saudades,

R.