Rewind

domingo, 4 de março de 2018

06.03| Querida Gó,

Gó, 

Toda a minha vida achei que os teus olhos eram de açúcar. 

E, toda a vida, achei que a nossa felicidade foi uma receita que tu ajudaste a cozinhar - só tu sabes quantas colheres de paciência, de infinita bondade, de genuína adoração teve sempre o amor dos Avós,  

quanto sofrimento e superação houve na nossa casa, 

em cada uma das vezes, sei-o bem, a nossa sorte era a tua sorte, a cada percalço o teu coração tremia com os nossos. 

Visto do teu colo o mundo era todo um enorme abraço - achava eu, todas as pessoas tinham que ser como tu e trazer uma luz inteira na verdade com que se entregam, com que ficam, com que sofrem, perdoam e permanecem.

Foste uma almofada a que o meu corpo sempre se agarrou - os braços enrolados no teu pescoço alto, as provocações que me perdoavas por entre gargalhadas - eu a medir, sem saber, a força da tua fé, a querer saber se me amavas a mim e ao A. acima de tudo, apesar de tudo, para lá de tudo. 

E amaste. Sempre. 

O teu amor, o dos Pais e o dos Avós foi, para mim e para o A., o milagre maior das nossas vidas.

Fomos sempre amados sem medida, sem comparação, sem interrupções e sem distâncias - talvez por isso, digo eu, só vos ame verdadeiramente a vocês. 

Não chamo amor a outra coisa que não traga a medida do absoluto que vocês me ensinaram ser possível. 

Quem ama como vocês nos amaram é como um céu que deixa brilhar somente a quem se quer muito e, justamente, eclipsa tudo o resto. 

Não tenho, por isso, meu amor, nome para os meios-sentimentos, para as quase-palavras, para as meias-verdades e para o estar-mas-ao-longe com que a maioria das pessoas diz que ama os outros. 

Dizia-te sempre, 

Gó, tu dás-me colo agora e eu dou-te mais tarde!

Prometi-te, um dia,  
   
Gó, nunca vais estar sozinha, ouviste? Eu levo-te para minha casa, tomo conta de ti e pronto!, 

Tu rias-te mas sabes que seríamos incapazes de te largar a mão. 

Há um tempo, no velório da tua irmã Maria, as pessoas, 

É da família?, 

e tu, muito rapidamente, 

É como se fosse

E que orgulho tenho em seres da minha família  - no meu sangue há, de facto, tanto de ti - todo o açúcar do teu amor honesto e simples, todo o carinho em flor, a lembrança viva de cada uma das lições, das piscadelas de olhos, das corridas no terraço, das idas à missa, dos caminhos para a escola, dos bifes com ovo do domingo à noite, de todas as velas que acendeste no escuro da minha vida. 

O meu amor por ti é maior do que tudo o que as palavras deixem aceso depois de ditas. 

Mesmo assim, minha querida, podia falar-te uma vida inteira - muito pequeno dei-te a chave do meu coração e deixei-te morar nele para sempre. 

És como uma daquelas salas das casas grandes a que se volta para nunca esquecer o quão feliz se foi. 

É isso - tu lembras-me da criança que corria num terraço; um terraço onde tu, os Avós e os Pais eram, justamente, o céu onde eu e o A. brilhávamos mais alto nessa felicidade inteira e afiada como um raio de sol.

Hei-de gastar uma vida toda a amar-te e, com isso, a agradecer-te. 

Obrigado por tudo, querida Gó. 

Acende uma vela no escuro, se puderes, e demora-te por cá. 

É desse milagre que eu e o A. precisamos 

e de um, 

Vai correr tudo bem, meninos, vão ver

só para haver um terraço, 
duas crianças que correm, 
e um amor que elas acham que será eterno. 

Parabéns! 

RM| IV|III|MMXVIII

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