Rewind

domingo, 23 de novembro de 2008

Os dias

Todos os dias acordo. Todos os dias do véu da noite se revela a nudez do dia. Há um mundo lá fora. E todos os dias o mundo acorda e com ele acordam os nomes das pessoas, do familiar, do meu. Acorda o meu mundo.
E da varanda, bem lá no alto, vejo as àrvores e o passo agitado daqueles de quem nada sei. Curioso poder deles esperar tudo. Imaginar-lhes rostos no sangue como os que correm no meu. Imaginar-lhes as dores como cicatrizes de feridas que já doeram muito. Imaginar-lhes esse equilíbrio tão frágil que é a vida. Imaginar-lhes o sorriso livre da véspera; o amor desabalado da véspera; a despedida que agora se começa a viver.
Esse todos os dias procurar encaixar o nosso corpo e a nossa alma nos dias e nas horas, com a esperança de que aquilo que pomos neles os faça mais do que apenas isso.
Não os ouço pensar. Não lhes sei os amores e os desvarios. E quem precisa? Ali vou eu. O dia de dor daquele que passa com o olhar vazio já foi o meu. O dia de alegria extrema daquele que agarra a mão de um amigo já foi a minha.
Todos os dias antes de começar o dia, ali estou eu na varanda. Nesse tempo antes do tempo. Nesse antes do tempo começar a correr. Imagino os meus ainda mergulhados no sono. Guardados do mundo.
E na alvorada do dia que desponta, às vezes com um acordar mais lento, mais rabugento, é a face dos que amo que eu vejo. E dos que amei. São eles a minha face do Mundo. Foram eles o começar de muitos dias. Foram só alguns que comigo esperaram a noite.
E todos os dias o Mundo parece começar de novo. E todos os dias começa de novo em mim o amor pelos meus. Com um acordar fácil, alegre e intenso como a luz cristalina da manhã. Começa de novo com tudo o que é velho. Com as roupas gastas desse sentimento sempre intenso. Com o cheiro morno da comodidade; o cheiro a pele cozinhado no calor dos abraços e no vapor das lágrimas. Com o amor pelas falhas que se foram abrindo mas que um amor redobrado e fortalecido fechou.
Que me reserva o meu dia? Saio da varanda. E vou para a rua.
E agora em baixo, na rua, sou um deles. Com as horas e a vida assim por preencher. Cheias apenas da certeza que me fez dormir melhor na véspera. Desse amor dos outros por mim. Daqueles que sabem de mim ou já souberam. E que do alto das suas varandas me reconhecem e sabem o nome de passar ou ter passado por ali muitas vezes.
Por isso acordo todos os dias. Com tudo o que ainda trago prestes a começar de novo. E talvez por isso não me lembre nunca ou quase nunca dos sonhos. Espero pelo meu sonho que começa com a luz da manhã. Todos os dias. Até ser dia.

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