Rewind

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Mar

A cidade corria num passo ligeiro. O seu pulso era por essa hora um pouco mais suave. Começava o céu a despir o dia e a vestir a noite. E ele viu-se num desses sítios de sempre. Quando habitamos um lugar e lhe chamamos casa, começamos a pendurar nas suas paredes os retratos das ausências.
Ao habitarmos o mesmo espaço, percebemos o que o tempo fez connosco. O mesmo mar - assim imenso como o fundo sem fim de uns olhos que recordava sempre. Mas as ondas já não chegavam à mesma praia - contava com o seu corpo em silêncio como a vida, de repente, lhe fizera nascer essa saudade dos tempos passados.
Ao mesmo lugar podemos voltar completamente diferentes. A mesma morada aberta ao sol - essa onde os passinhos de criança deram lugar ao caminho de um adulto- já foi o lugar onde fora esperar que a noite passasse.
A mesma luz a repousar no fundo do leito calmo das águas. E, de repente, o vento num ímpeto mais caprichoso a deixar os seus gritos escritos nas rochas bordadas de espuma. E, ali, longe dos corpos que se cruzavam consigo na sucessão dos dias, podia finalmente ver o corpo do que mudou - e eis as paredes cheias de pequenos piscares de olhos: e só então percebera que nunca deixara ninguém. Que todos e tudo morava consigo ainda. A algumas coisas simplesmente já não as queria com esse desejo sem tecto que é o amor. Aprendera a vê-las, a namorar-lhes o encanto perdido e a sorrir. (Às vezes, o seu sorriso era cinzento. Lá escapava por entre a baínha firme da serenidade, o arrepio húmido da nostalgia.)
E o mesmo mar. Pelo mar sabia ser essa ainda a sua vida. O mar era o seu espelho - o fio que ligava todos aqueles que moravam com ele na praia. O mar vira com o seu rosto inalterado como tudo foi mudando e, também, como tudo era ainda o mesmo.
Pela face fixa do mundo ele tinha sempre esse norte, erguido no colo ondulante das ondas.
O mar e o sua eterna valsa de luz e espuma lembravam-lhe que a vida nos devolve tudo o que lhe damos. Como o mar cospe tudo o que lhe lançamos. Por isso, confiava nele.
Quando se podia ouvir, porque havia finalmente espaço, era o mar que baptizava o seu silêncio com a verdade que fora a sua. Voltava a memória de tempos felizes. E isso ajudava-o a saber que o seu nome morava nalgumas partes da vida de alguém.
Outras vezes, lembrava-lhe a dor imensa e funda que já fora o pano de fundo de alguns dias. E ele sorria - assim como sorrimos aos olhos de quem já nos conhece muito bem.
Ele amava a vida. E gostava de ser como o mar. E acabar por deixar na areia da mesma praia - essa que era a sua - a memória feliz daqueles que tivera consigo. Acabar por conseguir voltar a deixar na areia da nossa vida as mesmas palavras que dissemos outrora.
Como a verdade que existiu e que o mar nos devolve para que nunca esqueçamos que a verdade por se perder de nós, não significa que um dia não tenha existido.

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