Rewind

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O lugar onde mora a paz

Os seus corpos eram velhos. Os olhos pequenas covas de luz num emaranhado de linhas e ziguezagues incertos. Traziam o corpo como um peso sobre a vontade que ainda lhes acendia o sonho. Alinhavam-se com os olhos presos no infinito. E quando ele chegava algo mudava na vida deles e na dele também.
A eles chegava o que a vida lhes parecia ter dito para deixarem de esperar. A ele chegava essa satisfação maior que pendurava na parede dos dias mais difíceis. Nada importava mais. Pelos outros somos conduzidos à escala da verdadeira felicidade: só quando importamos pouco ou quando não importamos tudo percebemos o quanto da felicidade é o chamarmos pelo nome dos outros.
Só a solidão morava ali. A casa enorme recolhida atrás de uns portões verdes e umas árvores a habitarem o jardim onde se não via ninguém.
Pensou muitas vezes que aqueles portões eram o símbolo do que nunca chegava: dos filhos que não entram e dos amigos que vão morrer longe de nós.
Ali parecia morar uma linguagem esquecida pelo mundo: moravam os rostos daqueles cuja vida eram os outros; os fantasmas dos outros; os medos dos outros; a dor dos outros.
Ele lembrava-se da sua vida: um mundo farto, um lugar aonde chegar e poder ficar porque nos querem e o amor acontece todos os dias.
Uma senhora segurava a Bíblia: o seu balbuciar era compulsivo; rondava os cantos à sala como que fugindo aos fantasmas do que ainda não veio. Isso é o medo. E o medo vem morar no colo da solidão.
Ele ouvia as suas histórias: e o seu corpo jovem e viçoso já fora deles; os sonhos, a doçura, a garra que ainda nos sobra na juventude já dormira com eles um dia.
Era ali que se sentia bem. Podia tentar explicar porque aquilo lhe parecia infinitamente maior do que quase tudo o que conhecia. Mas isso vivia no silêncio do seu contentamento.
" -Quer dar o seu nome para agradecermos a sua ajuda e os seus donativos nas nossas orações?"
" - Não, irmã, obrigado. Existem outras formas de chegar a Deus."
E era isso que trazia no peito: a recordação daqueles olhos que brilhavam de novo e que ainda hoje não esquece. Aprendeu a nunca deixar sozinhos aqueles que se ama. O amor é uma morada conjunta. Tinha medo da solidão: de ver desaparecer o chão do seu caminho e de se achar perdido no meio de um longo deserto vazio.
A senhora lia a Bíblia. Uma e outra vez. E mais outra, ainda.
Estende-se a mão a quem tem medo. Sempre.
Ocupemos o lugar da solidão e já não precisaremos da Bíblia.
Porque Deus mora na morada conjunta que é o amor.


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