Rewind

domingo, 7 de agosto de 2011

"Vamos, sim."

"-Vens ver-me hoje, Ricardinho? E o teu irmão?"




Uma boa parte dos meus dias começam assim. A mãe ri-se do lado de cá do telefone porque já sabe que palavras vêm do outro lado.




"-Vamos, sim, Avó."




E sou eu quem gostava que eles acabassem sempre assim - o amor como esse corpo que nasce de actos simples. Esse ir a tempo, chegar e aguardar por essas imagens, palavras e gestos que sei me manterão sempre perto de uma ideia muito clara de felicidade - como um jardim silencioso bordado de cheiros e ruído a água por perto.




Todos os dias conheço melhor a minha família - há sempre alguém que não os deixa esquecer, que lhes presta homenagem com as palavras ou com o silêncio de um olhar embaciado pelas lágrimas que diz tudo.




As palavras são a nossa forma de cravar o orgulho no lugar das ausências - desde sempre me ensinaram a acalmar o vazio das perdas com esboços sempre mais perfeitos de um amor que subsiste.




Reconstruo a imagem daqueles que a minha mãe, irmão, avó e pai amaram com eles para que possam ter uma imagem mais perfeita, mais nítida por cima dos escombros das ausências.




A memória é uma finta sobre a fatalidade da vida - nada nos pode roubar o sol de tardes infinitas, as frases ditas a direito sobre o coração, sobre as lágrimas e as dúvidas.




Escrever ajuda a lembrar melhor - as palavras pousam puxando pelo fio da memória e cada linha é como um abraço ou uma ruga que fica mais apertado ou marcada mais fundo.




Escrever é o desabafar da memória como se se abrisse uma sala de uma casa fechada há muito para se varrer o pó e tocar as teclas de um piano há muito solitário.




As palavras, como os sentimentos, são testemunhos que se deixa ao futuro - não nos queremos longe uns dos outros.




A minha avó é uma pessoa que fez da família - de mim e do A. o corpo onde ela morará no futuro. Connosco, como nos diz, chegará àqueles que vierem depois dela.




Dizemos-lhe que saberão dos seus olhos azuis fundos como cristal, das suas mãos finas e longas, do seu gosto pelos retratos acolhidos no fundo de molduras, do seu carácter, da sua força e do seu carinho. O seu rosto acende-se, olha-nos como para nos fixar por uma última vez - estes dois rostos que desejam que não se note o medo da perda.




O amor é sempre algo que nos sobra no peito perante a escassez da vida. De cada vez que a ouvimos desejamos ouvi-la mais, vê-la mais, crescer outra vez debaixo do abrigo desta família que aprendemos a amar.




A minha mãe e o meu pai sempre nos quiseram por perto deles - sabiam como é importante "ouvir a vida de lá para cá", como diz a minha avó.




E fizeram bem - ouvir a vida foi conhecer a forma mais sublime do amor que é a saudade feita sentimento todos os dias.




No lugar das ausências pomos todos em conjunto a vontade de que eles vivam em nós nos dias do amanhã.




São como flores que voltam a nascer do chão que os sepultou - flores que transformam a vida nesse jardim calmo de flores e rumor de água fresca de encontro à pedra.




Apetece-nos dizer "Avó, ainda não crescemos tudo, fica." A absoluta necessidade de alguém faz o tempo sempre uma insuficiência.




O amor não se resigna ao tempo porque justamente radica na vontade. Numa vontade absoluta a quem ninguém avisou que a vida acaba.




Para nós, a resposta será sempre "Vamos, sim, avó."




Porque iremos sempre - um dia, esteja onde estiver, é por ela que chamaremos como medida do azul mais perfeito, da ambição mais digna, da avó a quem tanto ficamos a dever. ´




Uma vida não chega para agradecer. Por isso, se evoca tanto cá por casa - como que a dizer o que a vida nos abafou num soluço ou nessa enxurrada intensa que é o amor.




Obrigado mãe e pai - só assim a face do amor fica completa.




E a minha avó ficará sempre no nosso coração emoldurada por essa vontade de dar parte da nossa vida para que ela a viva connosco.




"-Vens ver-me hoje, Ricardinho? E o teu irmão?"




"- Vamos, sim, avó, vamos sempre."




Esta é a resposta que ela ouve sempre que nos despedimos - lá no fundo ela sabe, como nós, que ao amor ninguém disse que a vida acaba. Por isso se pode amar tanto. E isso nos saber sempre a tão pouco.




Só quem conhece o amor saberá que foi ele que deu ao Homem a razão porque a finitude nos dói tanto. Porque no dia seguinte, incondicionalmente, nasce uma vontade de ir. De ir no caminho que nos leva uns aos outros. Sempre.

1 comentário:

Anónimo disse...

assim são os avós...
Que beleza de texto!!!
Um beijinho Ricardo da Conceição, que não é ausente, nem está...
( formiga que lê)