Rewind

domingo, 16 de março de 2008

A caixinha mágica


Hora do jantar. Ritualisticamente a família senta-se. O pai cansado das horas entediantes no escritório vai debicando os tremoços. Amanhã novo dia. Sem glória. O que lhe vale é aquela miúda lá do trabalho que deambula a distribuir cafés. Estranhamente, sabem-lhe como se tivessem adoçante. O filho mais velho colado na consola a desferir golpes mortais resiste em ocupar o seu lugar na mesa. O bebé pequeno clama por sustento. E a mãe desdobra.se em múltiplas acrobacias, apesar da gravidade parecer pesar mais agora.
Tudo sentado, começam a comer. Enquanto a mãe pergunta ao filho como foi o dia, o pai agarra o comando como quem agarra um bilhete só de ida e liga a tv. "Que pena que não temos um plasma, desabafa para consigo mesmo!" Começam as notícias. É um alarido de cor, vozes que se levantam, palavras acutilantes como gritos de guerra. É o desemprego na Alemanha, a subida do Euro, uma menina de Vila Nova de Rabona que tem três olhos e, claro está, a fome em África e essas guerras que as pessoas sabem que metem petróleo, só ainda nao perceberam muito bem como. E é isto, estas personagens que aqui vemos, este pai, esta mulher e os seus filhos, fazem disto o pao deles de cada dia. Jantam a fome dos outros, a miséria alheia como quem enfarda o melhor dos repastos. A mulher ainda diz: "Ai, isto está cada vez pior!". O marido que ela repara estar cada vez mais gordo e onde ja nao vê os traços da juventude, continua, depois de responder com um suspiro, vidrado nas letras e luzes da televisão. Como nos westerns, mas agora com armas químicas e protagonistas de túnicas brancas e barbas que nao usam cavalos, mas aviões.
Segue-se um longo tempo dedicado ao desporto (estranho que só se jogue futebol, no país destas pessoas), o marido ainda solta dois urros. Findam as notícias. Estranhamente, ao contrário dos filmes da sua infância, não espera ver o tão aguardado "HAPPY END". Antes, como que seguindo uma série que se tornou a sua favorita, este homem aguarda as cenas dos próximos episódios. Com mais homens feios, porcos e maus e tempo para pensar na boazona lá do emprego. As crianças dormem. A mulher ainda na cozinha. Ele num zapping contínuo, acaba desligando a tv, como um miúdo cansado de brincar.
Agora que na sala, a caixinha mágica se desligou, há silêncio. O homem murmura: "É a vida!" E com esta tirada, parece chamar o sono ainda nao eterno, para lhe aliviar as dores da labuta. E este homem que dorme neste sofá, esta mulher que se afoga nos afazeres e os miúdos que dormem acreditam que aquilo que veêm não é a vida - pelo menos não a deles. É tudo lá longe em sítios com nomes estranhos e impossíveis de pronunciar. De costas colados na tv, nem se apercebem que aquilo que ali veêm é como uma câmara que lhes filma as costas e nem olham.
Todos dormem. Amanhã, novo dia. O marido vai apanhar o metro para ir ver a boazona, ao tomar o pequeno-almoço na firma. "Quantos são amanhã, mulher?", perguntara antes de adormecer.
"- 11 de Março homem, 11 de Março!"

Sem comentários: