Rewind

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

casa.

As casas grandes são o palco onde o mistério paira sempre sobre as coisas. As paredes são como alicerces de um ventre onde se forma e refaz a vida no correr do tempo.
Cresci numa casa dessas - cada quarto com as histórias presas como retratos que só nós conhecemos, cada espaço povoado do som doce dos afectos, cada corredor testemunha dos passos que demos em direcção uns aos outros.
A casa dos meus avós foi a fortaleza da minha infância - as tardes eram longas, sempre rodeadas das pessoas que me ensinaram o que era o amor. Sei que há coisas de mim guardadas em cada uma daquelas paredes, ruídos dos meus passos felizes quando corria para abraçar o meu avô que foi o maior homem que já conheci.
Aquela casa conta-nos como família - esses almoços com a minha avó a sorrir-me da ponta da mesa e a admirar a minha audácia e do A.
Lembro-me de encontrar a minha mãe deliciada com o meu avô que a amou como a uma filha.
A Gó como a sentinela que sempre nos protegeu e nos deu um mimo intenso como uma tarde de calor na serra.
Há algo de mim que ficou sempre ali - que mora na cascata de felicidade que nasceu da conjugação daquelas pessoas que tocaram a minha vida.
Admiro a elegância da minha avó que me recebe sempre com essa intensidade que denuncia o amor que sente por mim como uma espécie de fanatismo que a alimenta.
Conta-me que história têm as jóias que usa - o carinho do meu bisavô que lhe dourou a meninice, o amor que o meu avô lhe teve.
Na minha vida, as casas e as pessoas servem para homenagear aqueles que dão significado ao que somos. E a casa dos meus avós guarda a versão mais inteira, mais verdadeira daquilo que sou.
Entro na casa num dia em que a minha avó não está - percorro todo aquele imenso espaço, vejo as orquídeas como uma longa massa de cor e verde, alinhada sob o sol da tarde.
As salas muito quietas, os corredores mergulhados na sombra. Ninguém.
Vejo que a minha avó deixou a carteira esquecida e aberta.
E quando reparo, vejo que tem uma fotografia minha e do A.
Conto ao meu pai que me diz que a minha avó não a quis num porta-retrato para que "eles andem comigo para todo o lado."
E, em silêncio, lembro-me quando encontrei na secretária do meu avô, depois da sua morte, presos por um elástico, todos e cada um dos postais que a minha mãe nos ensinou a gostar de escrever.
A letra infantil foi mudando, tornou-se num espelho do que nos foi acontecendo.
Leio os postais - sempre as mesmas palavras - "saudades, avô."
"Temos saudades tuas, querida avó."
Há uma frase que se destaca, num postal meu:
"Quem me dera que estivessem aqui"
Percebo que certos desejos nos acompanham toda uma vida. São como certos lugares aonde chegamos para dizer:
"Estou em casa. Sou daqui."
A minha família ensinou-me essa espécie de vício que pode ser o amor.
E quando penso naquela casa, consigo lembrar-me desse rapaz que um dia teve algo que o mundo pôde atingir, mas que a valsa do tempo não consegue, afinal, levar da verdadeira morada do amor - essa que é, afinal, o nosso peito.

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