Rewind

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

do amor prosaico, mãe

um café e um cigarro contigo, mãe
ao fundo, o trânsito carregando as veias escuras da cidade

saber que me esperas - as tuas costas pequenas numa cadeira de uma mesa no canto
eu, vindo de um sítio qualquer, entretido pelo caminho a pensar na métrica irregular de tantas coisas
e, ao fundo de um lugar qualquer, sem nome, mas com uma mesa num canto 
tu, eu, nós e um café curto e um cigarro  

de repente, já pode haver silêncio como se me lançasses um cobertor 
olhas-me com o teu sorriso paciente de quem conhece todos os meus truques - 
em que bolso do casaco escondo a angústia, 
que camisa uso para poder ter menos saudades de alguma coisa, 
ou em que bolso das calças amasso com os dedos o que me dói

e, então, o teu cigarro acende-se como uma luz dentro da noite, 
o café fumega quente e vagaroso
e os teus dedos procuram os meus, como uma palavra cruzando outra, na folha de um jornal esquecido.

o amor pode ser tantas vezes feito disto - 
as mães acendendo a luz de um cigarro no escuro do caminho dos filhos 
em silêncio, lançando cobertores que são como braços onde se vai buscar o ar de que se precisa
e, enquanto o café fumega e se espreguiça a tarde sobre as ruas, os filhos sabem que alguém os ama -
só porque há silêncio, 
só porque as palavras estão prescritas nos diálogos mais sinceros do amor,
só porque o café é curto, a mesa é no canto e o cigarro e tu têm paciência para mim

querida mãe, que ridículo medir-te o amor pelos cafés e cigarros dos nossos encontros, 
eu sei. 

mas, sabes, preciso de ti 
e de acreditar que, em todos os lugares do mundo, pode haver uma mesa no canto
só para que acendas um cigarro, 
peças um café curto
e me estendas a mão como uma palavra que cruza outra na folha de um jornal esquecido. 

29. Inclinação da alma e do coração. [subs.]

ambos adivinhamos que palavra é - amor. 

mas só tu, num café sem nome, em qualquer lugar, sabes com quantas letras caladas ele se escreve. 

Amo-te. 

RM|XXVII-I-MMXVII

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