Rewind

sábado, 6 de setembro de 2014

ardeu-te o coração?

"Ardeu-te o coração?", dizia o bilhete que te deixei.  
 
Saí para o desapego da cidade com a certeza de ter sido despejado - sair dos teus braços, de dentro da tua boca, do encontro da luz dos teus dedos é perder sempre.
 
Os parágrafos cinzentos em que se escreve a inclinação da nossa rua nos meus olhos, a pontuação desajeitada do desejo a tentar encurtar a distância - prender os olhos no mar e imaginar que as ondas se agarram também ao sonho de um encontro e vêm deixar na praia despojos das memórias que não conseguem perder.
 
Dentro de mim todas as janelas trazem a vista do teu corpo - nos vidros das montras quero encontrar os teus olhos, nas pedras da calçada o teu passo feliz de quem traz na pele a leveza de poucas promessas e muitos sonhos. Sentar-me num café qualquer a fumar um cigarro e fintar o desejo com o que só o silêncio nos conta.
 
Pensei na tua boca, no que ela me diz mesmo em silêncio, no litoral ventoso que a tua língua faz nascer no arrepio da minha. Pensei por que veias me chega a tua memória ao fundo dos olhos, por que esquinas da alma espreitas, sorrindo como se estivesses à espera.
 
As jarras das mesas trazem flores, há no chão sombras mais quentes do que os corpos que as carregam - há ainda um resto de Verão em tudo. Sorrio ao pensar que protestas quando deixo as portadas da janela do quarto abertas. Eu rio-me e digo-te que o frio te empurra para mim. 
 
Lembro-me do bilhete que te deixei - as palavras como poemas inacabados, a caligrafia como traço impreciso quando tudo o que eu queria era deitar-me contigo na véspera de todas as partidas e adiá-las sempre. Lembro-me da letra de uma música qualquer onde se escondeu a memória feliz do teu olhar ao levantar-se em direcção aos braços do meu.
 
Soube que era amor quando a espera me soube a renúncia.
 
"Ardeu-te o coração?" - os teus lábios a lerem a fome que traz a minha boca, os teus dedos a encontrarem os meus nos vincos mordidos do papel que te chama sobre a mesa.
 
Da janela que ficou aberta toda a noite, o vento sopra.
 
Como se esperasse, no regresso, uma resposta.
 
 
 
 
 
 

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