Rewind

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

se já não for eu,

daqui onde me deito, consigo sentir amor nas coisas que deixas espalhadas pelo quarto - livros com as páginas mastigadas em sublinhados carregados, dois pares de sapatos que te descalcei algumas vezes, a minha camisa que passaste a preferir depois do dia em que te tratei finalmente por tu ao roubar-te dos lábios um beijo demorado.
 
no meio dos livros guardas sempre alguma coisa - depressa te tornas cúmplice das personagens de que gostas, falas delas de dentro do vapor do banho e eu olho pelo espelho como se quisesse encontrar-te perto as mãos só para ter a certeza de que a manhã será de sol. guardas dentro dos livros bocados de ti - rio-me ao pensar que é quase como se também tu te quisesses confessar da mesma forma, ser tão honesta quanto aqueles que ouves falarem de cidades que nunca viste, de bocas que nunca beijaste, de camas onde nunca te abraçaram dentro da noite.
 
um dia, ao acaso, encontrei uma fotografia nossa dentro de um. senti-me parvo ao imaginar o que te diriam as personagens do rapaz com quem, nesse dia, tinhas ido ao cinema e que do filme apenas se lembra do desejo a encher-lhe o corpo como uma maré que chegasse aos telhados das casas mais altas da rua.
 
ainda guardo todos os bilhetes das nossas idas ao cinema quando choveu, quando não choveu ou mesmo quando o céu era só céu antes da chuva. até hoje, não sei com que palavras os meus dedos te convenceram no escuro, mas lembro-me de que me apaixonei logo pela caligrafia inquieta do teu corpo.
 
daqui onde me deito, vejo que há três flores a rebentarem na varanda. tu gostas de descansar a fala no dorso da vista da janela e eu, depois de ti, percebi que o amor é um quarto com vistas, mas para dentro.
 
daqui onde me deito, vejo que a saudade pode ser estas palavras que encontro dentro dos bolsos e que me entretenho a alinhar na cal da parede alta da tua ausência. reparo que deixaste os teus óculos esquecidos na mesa junto à janela, perto dos últimos cigarros que fumaste antes de saíres a correr pela escada.
 
tola, rapariga. tu vês mal ao longe. e eu estou longe, porra.
 
daqui onde me deito, saio para comprar um bilhete de cinema. por acaso, não chove.
 
se vieres por causa dos óculos, perdi as chaves.
 
se vieres por mim, estou no cinema.
 

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