Rewind

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

"Fica"

Confesso ter andado a pensar no que é isto de se ser viciado em gente. Assim mesmo: vício e gente.

Carrega a palavra "vício" essa dose (ironia feliz, esta) de medo, de sombra como se a tinta que a escreve, a não absorvesse totalmente o papel. Significa amputarem-nos o inteiro; o haver fora de nós o apelo irresístivel de nos cumprirmos. E há muito que sei que nos pode correr nas veias uma necessidade absoluta de nelas metermos nomes, vidas inteiras, promessas e deixá-las chegar ao coração.

E carrega "gente" o mundo inteiro. Carrega-nos a todos nos ombros esta palavra com som de mãos a passarem em paredes ásperas. Carrega todos os rostos e peles; toda a luz e a sombra de que somos feitos.

E faltar-nos algo que anda aí escondido no jogo das vidas a ajustarem-se na medida exacta para ver o Mundo, não é fácil. Há quem chegue e fique. Fique logo, como o raio de luz mais audaz. Mesmo que o não admitamos. E há aqueles amores difíceis, os mais improváveis e feitos dessa vontade de nos amarmos em lados opostos da vida e do Mundo.

Amar o modo desajeitado com o que o Mundo nos põe no caminho uns dos outros é perceber que os olhos foram feitos para ver mais fundo. Aceitar que o mesmo Mundo nos leve aqueles que já nos sabem distinguir pelos nossos passos dentro deles, é perceber que o amor pelos outros pode ser também uma vela que mantemos acesa e que arderá sempre connosco.
Eis que só assim o teatro da vida fica completo: quando estamos com os outros como estamos sós. Nesse esquecer na presença de alguém tudo o que já foi só dele, para o fazermos nosso e lhe reconhecermos a nossa pele. E cedo descobrimos que, na verdade, ninguém condiz com ninguém, em absoluto. Nem nós tão pouco condizemos connosco. E, por isso, porque precisamos ou porque queremos simplesmente ter alguém por perto, acendemos a tal vela da esperança. Do acreditar que a promessa das nossas vidas umas nas outras e os corpos bem por perto, vai resistir ao Mundo, ao tempo e, sobretudo, a nós mesmos.
E é bom agarrar o compromisso de alguém contra a noite da vida. Dormir melhor depois de alguém acreditar connosco. E se chegar o dia em que o medo, a dor, as palavras imundas parecem apagar o lume que o olhar de alguém acendeu, é sempre bom lembrar que o Sol continua lá, apesar das nuvens, como me disseram um dia. E que as palavras trocadas estão gravadas numa página que queríamos ganhasse o pó do tempo.
E podemos sempre voltar a esse ponto. Quando a nossa memória passar pelo mesmo sítio. Pode a vida ser vivida mesmo de trás para a frente. Ou de todas as maneiras em que procuramos encontrar forma de ouvir a nossa voz, sem perder a dos outros.
E é isso que acaba sempre resistindo: a memória dos tempos que têm a nossa esperança gravada. O som de tempos felizes que nos acaba sempre visitando. Desses tempos em que acreditamos que o sempre seria nosso, depois das falhas, para lá do medo. E uma vez chegados aí, tudo é possível. Porque nunca se perdeu. Tudo sempre esteve ali, pronto para ser recomeçado depois de um abraço que diz: "Fica. Desta vez, fica."
Porque, sim, o avesso do Amor é tantas vezes o Amor mais forte.

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