Rewind

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A nostalgia


Gostava quando a saudade o visitava assim: passos rápidos, da velocidade do ar que inspirava até que era toda sua. Ou do seu peito, que era o mesmo. Gostava do seu corpo quieto sob a luz cinzenta do céu de cobertores. Estava deitado perto da janela. O corpo estendido, existindo apenas o dentro que só ele via.

E o seu corpo era o retrato silencioso do que já lhe passara nas veias. Lembrou cheiros onde planara mais alto. Lembrou o olhar do avô onde sempre se sentira seguro. Os corpos que amara e que devolvera à terra. Lembrou os amigos que perdera. E aqueles de quem se perdera. E aí a saudade doía, misturada de culpa e banhada de um remorso como o orvalho triste nas ervas da manhã. Ela vinha no seu namoro infiltrar-se nos ossos e trazer à luz tudo a quanto havia ele emprestado o seu olhar ou a memória da pele onde demorara os lábios.

Passava-lhe no corpo o fio suave da memória. E só por ali sentia ele que vivera. Por tudo o que já não tinha.

Às vezes, via o brilho da luz demorar-se na lembrança e só então reparava. Reparava como o sorriso da mãe sempre fora o mesmo: imenso, terno - uma cama de paz onde podia dormir. Como aquele amigo fora importante e ter o seu abraço fora o orgulho maior. E a saudade doía mais. A saudade de ter sido feliz. Uma felicidade que lhe voltava ao sangue como a um filme a que não volta a voz. Imagens soltas e caras onde se desenham linhas. Ele a adivinhar-lhes a ira ou o contentamento inteiro mas a voz a escondê-la o manto espesso do silêncio.

Ficava no corpo moído, o eco marcado dos seus passos. Fechava melhor os olhos até que o sangue afogava tudo, de novo, no fogo quente. Como num quarto há muito fechado onde, depois de nós, o pó assenta numa chuva serena de entrega às coisas que o tempo, mais do que elas, lhe entregou.

Só pelo que perdera percebia o quanto tinha vivido. E teve vontade de ser o pequenino a quem a mãe amou mais do que tudo. Ou o amigo que não perdemos e nunca se perde. A memória misturava-lhe no rio de sangue a nostalgia. E ela, com a sua voz doce, suavizou os traços e diminuiu as distâncias. E ele pôde ser, de novo, o filho que adormece no colo da mãe. O corpo pequenino e cansado de querer mais ar para os seus sonhos. E foi o amigo que a vida não apagou.

A memória nunca apagava o sonho. Lembrava-o sempre do que não acontecera. E ele sonhava de novo com um gesto suave de mãos que tocam quem amam. Sonhava que à sua voz o amigo sorria de novo. E que a mãe sentia que a vida toda cabia nos seus braços de novo.

Gostava da saudade. E do que ela trazia. O tempo contendo a nossa vida. Os nossos erros. A possibilidade de rir de novo. De provar, de novo, o sabor das lágrimas que nos fugiram. Demorar aí o gosto, molhar aí a pele. E escrever, bem fundo, com a tinta lenta da nostalgia o que o nosso amor sonha por cima das falhas. E para lá delas. Como promessas na areia que uma onda vem roubar.



Schindlers List Theme - John Williams

1 comentário:

filipelamas disse...

Muitos parabéns pelo seu blog! Excelente qualidade!
Uma visita a repetir!