Rewind

domingo, 18 de janeiro de 2009

Na casa




Sempre fora de entregas demoradas. Não sabia porquê mas viviam-lhe na pele sempre os sonhos muito tempo. Pensava que talvez fosse isso de viver muito que lhe desse memórias suficientes para se lembrar a si e aos outros. Fora seu peito sempre cimento fresco onde secou cada um dos amores e das entregas.




E não lhe pesavam. Embora os carregasse já sem doer, com a vida que ainda faltava, esperava que nascesse em quem partira o súbito desejo de retomar a vida que parara. Aprendera a visitar a memória sem que doesse. Visitava o tempo ido em que o amor tinha corpo presente mas vivia para lá dele. Isso era a prova que tinha de que era verdadeiro.



E, por isso, não deixava esquecer as promessas. Não era porque não se tinham cumprido que eram menos verdadeiras. Talvez se agarrasse a isso. A verdade não é só aquela a que emprestamos o sonho e julgamos legitimar.


A verdade é tantas vezes uma verdade sem corpo. Só a si foram ditas aquelas palavras e só no seu corpo curara alguém as suas feridas. E sabia-o quando caminhava já sem ninguém.


Aprendera a agarrar as verdades que mais ninguém vira. E a confiar na sua voz que lhes limpava o pó e as ressuscitava da sombra.


Muitas vezes era uma casa abandonada. Sítio de encontros e desencontros; o corpo aberto e o medo da entrega sempre vencido. Um corpo espoliado do que nunca fora seu para além da força de um amor sincero. E esse amor foi o pedido calado de que ficassem os corpos desse amor.


Que ficassem depois das piores palavras. Que ficassem depois de acontecer o avesso dos desejos. Hoje sabia que o amor era mais amplo do que imaginava. Que o peito pode chamar amor ao que o orgulho rejeita.


O amor faz-nos humildes. Quem ama nao percebe que sente o infinito somente na pessoa que está diante de si. E isso é pedir menos.


Mesmo que fosse essa casa abandonada - assim com o ventre exposto - só a sua presença poderia arrancar daquelas paredes a memória perdida de existências felizes. Sem si tudo aquilo seria uma cama vazia onde só dorme o tempo.

Gostava de recordar. De devolver à sua pele, pela mão saudadosa da memória, o arrepio fácil que fora o seu. De rasgar de novo as cicatrizes fechadas para imaginar que quem as levou também as tem.



Só pela sua mão viveria de novo essa felicidade ida quem já partiu. E gostava de ver as pessoas felizes. Por isso agradecia a vida que teve. Essa que carregava no corpo e na voz. E que fazia tudo mais leve.

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